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A Tecnologia nos deixa acomodados?
E como IA pode nos deixar passivos
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Oi pessoal! No artigo de hoje vou cobrir uma tema que está me deixando desconfortável: como a tecnologia está nos deixando pessoas mais fracas ao tirar os perrengues da vida.
Se tiver apenas um minuto, segue um resumo:
A filosofia atual sobre criação de novos produtos é de um exercício de eliminação de fricções (“frictions”) nas interações dos usuários
Somos uma espécie forte, capaz de enfrentar condições muito adversas para sobreviver e prosperar. No entanto, nos acostumamos rapidamente aos confortos, e isso faz com que nossa paciência e resiliência estejam em constante declínio
À medida que a IA pensa e resolve problemas para nós, nossa tolerância ao atrito vai diminuir ainda mais
Vale a reflexão sobre o quanto de perrengues precisamos ter na nossa vida. Ter a resiliência para passar dias sem comer talvez só seja útil numa situação de apocalipse, mas a força para superar a perda de um emprego é algo necessário num mundo em constante transformação
O Futuro da Humanidade em Wall-E
Quem acompanha o bsb sabe do meu amor pelos filmes da Pixar. Um dos meus favoritos é Wall-E, que conta a história de um robozinho cujo trabalho é limpar a Terra, que se tornou inabitável.
Terra poluída de Wall-E
Enquanto os robôs limpam nosso planeta, a humanidade buscou refúgio numa espaçonave onde todas as suas necessidades são atendidas por robôs e inteligência artificial. Depois de séculos vivendo nessa condição, encontramos nossos descendentes em uma situação deplorável. Apesar de suas vidas serem de completo conforto, onde até as tarefas mais simples são automatizadas, sabemos que algo está errado.
Humanos na espaçonave do filme Wall-E
Flutuando em cadeiras, distraídos por telas e incapazes de realizar atividades básicas por conta própria, eles ilustram o auge da acomodação tecnológica. Nesse cenário futurista, a humanidade perdeu sua autonomia, curiosidade e até mesmo sua conexão com o ambiente ao redor. É uma existência sem esforço e sem dificuldades, elementos que enriquecem a experiência de vida. A ficção científica distópica é um exercício de levar coisas atuais ao extremo. Wall-E possui bases sólidas no presente.
Como Criamos Produtos
Basta uma rápida pesquisa na internet para entendermos a filosofia atual sobre como empreendedores criam novos produtos: é um exercício de eliminação de fricções (“frictions”) nas interações dos usuários.
Hierarquia de fricções
Fricções são atritos, elementos desnecessários entre o usuário e seu objetivo, como cliques extras, pedidos de documentação ou etapas adicionais num processo de compra. Como diria meu pai, são os “perrengues” da vida.
Para aumentar a conversão e o engajamento, as empresas buscam criar produtos simples (mas não simplistas), com um fluxo sem interrupções. O objetivo é tornar as experiências mais agradáveis e acessíveis. Isso é obtido ao reduzir etapas, criar interfaces intuitivas e antecipar as necessidades dos usuários. Produtos que minimizam o esforço conquistam a preferência do público e promovem uma relação mais forte com a marca. Um excelente exemplo disso é o Nubank.
Existem negócios cujo único foco é diminuir fricções. Por exemplo, serviços de Edge Computing permitem que o tempo de carregamento de sites caia significativamente, aumentando o engajamento dos usuários. Estudos apontam que uma melhoria de 100 milissegundos na velocidade de carregamento de um site pode elevar as taxas de conversão em até 8%. Isso faz muita diferença.
Nossa Intolerância à Fricção
Vivemos num cenário onde algumas das pessoas mais inteligentes da atualidade, como empreendedores e funcionários de empresas como Apple, Google e Facebook, têm como objetivo diminuir a fricção na vida das pessoas.
Exemplo de otimização, ao aparecer a opção de colocar o CEP, o teclado muda diretamente para números
Isso é bom?
A consequência inesperada é que a humanidade está se tornando cada vez menos tolerante à fricção, ao atrito e aos “perrengues”.
A resiliência humana é impressionante. Um exemplo está no essencial livro O Arquipélago Gulag, do russo Alexandr Solzhenitsyn. Nele, o autor relata a precariedade da vida nas prisões soviéticas e como alguns presos conseguiam sobreviver e até viver uma vida quase feliz no meio daquela barbárie. É impossível imaginar aquele inferno, o que nos lembra uma citação do próprio livro: “Os únicos substitutos para uma experiência que não vivemos pessoalmente são a arte e a literatura.”
Somos uma espécie forte, capaz de enfrentar condições muito adversas para sobreviver e prosperar. No entanto, nos acostumamos rapidamente aos confortos, e isso faz com que nossa paciência e resiliência estejam em constante declínio.
Eu observo isso em mim mesmo: atualmente, basta uma entrega de comida pelo iFood chegar atrasada para “estragar a noite”. Um anúncio no YouTube num momento inconveniente, um produto com defeito no Mercado Livre ou um voo atrasado, todos são motivos para irritação e impaciência. Bem diferente do Eduardo que pegava 2,5 horas de ônibus todos os dias de ida e volta da USP. Tão logo um conforto se torna rotina, nossas exigências aumentam.
Consequências
Estamos nos tornando mais preguiçosos e impacientes. A cada dia o nível dos serviços atinge novos patamares. Há 15 anos, só existiam táxis; hoje temos opções como o Uber. Eu me preocupo que fiquemos cada vez mais preguiçosos e impacientes, com expectativas fora da realidade para cada serviço e produto.
Será que estamos caminhando rapidamente para a humanidade passiva de Wall-E?
As melhores interfaces de usuário têm configurações que revelam sua complexidade de forma gradual e com escolhas otimizadas. A consequência é que, hoje, não temos paciência para serviços que exigem esforço. Ter que preencher uma ficha de papel com caneta no médico ou no check-in de um hotel parece um absurdo.
Não sei direito o que sinto em relação a essa situação, mas não me parece algo positivo.
Por ter vivido algumas dificuldades que meus colegas e amigos não tiveram, sempre acreditei que elas me tornaram mais forte. Aprendi a valorizar o resultado do meu trabalho, pois ele foi custoso e difícil. Cada desafio vencido me preparava para o próximo. E são justamente de alguns dos “perrengues” que mais me lembro. Saber que enfrentei um problema no passado me dá a confiança para resolver o problema de hoje.
Se nossa vida tem menos fricções e dificuldades, ficamos menos resilientes e mais frágeis.
Sinais
Como percebemos que as pessoas estão mais frágeis? Não tenho dados concretos, apenas uma série de anedotas e observações.
Ao olhar meus feeds de redes sociais, percebo que desabafos sobre serviços ruins (como um voo atrasado) são cada vez mais frequentes.
Com níveis de tolerância menores, nossas reações são exageradas. O passo seguinte são polarizações em diversos assuntos. Temas como política estão polarizados num nível que beira uma guerra civil — em vários países.
Minha hipótese: nossa raiva crescente está ligada à falta de tolerância. Sem tolerância, somos mais fracos para lidar com problemas e frustrações.
Será que a humanidade está ficando frágil demais? Se a resposta for sim, como podemos mudar isso?
Cito novamente meu pai, que me ensinou que “músculo só fica forte com exercícios difíceis.” Se estamos menos expostos a “perrengues,” estamos menos preparados para lidar com eles quando aparecem.
Como Resolver Essa Situação?
Uma forma de lidar com essa realidade é trazer fricções e atritos sintéticos para nossas vidas, desenvolvendo um pouco de resiliência. Exemplos incluem esportes de alta intensidade, como o crescimento da indústria de corridas de rua, que já fatura bilhões no Brasil. O MBA de Wharton, por exemplo, oferece um programa de dois dias no estilo “Tropa de Elite” na escola de oficiais da Marinha americana.
Outra maneira é apostar em soluções que ajudem a lidar melhor com o atrito quando ele surgir, como meditação e medicamentos. Não me surpreende que, em países mais liberais, o consumo de algumas drogas recreativas tenha sido legalizado nos últimos anos.
Inteligência Artificial: a Matadora dos Perrengues
Essa discussão é importante pois a tendência é que essa realidade se acelere. À medida que a IA pensa e resolve problemas para nós, nossa tolerância ao atrito diminui ainda mais. Preocupo-me com as partes do desenvolvimento humano que podem desacelerar ou deixar de ocorrer devido à IA.
Estamos entrando em uma era em que cada empresa e produto com os quais interagimos terão um agente de IA. Estes agentes inicialmente trabalharão conosco, mas, com o tempo, negociarão diretamente com outros agentes de IA de terceiros. Em última instância, seremos removidos, se assim desejarmos, das transações diárias. Esses agentes atuarão nos bastidores, atendendo às nossas preferências e ajustando nosso mundo digital.
Personalização como Diferencial
Vejamos o ChatGPT como exemplo. Até o ano passado, cada conversa com ele partia de uma folha em branco. As informações fornecidas anteriormente não eram usadas para gerar respostas melhores.
Nas últimas versões, o ChatGPT já consegue se lembrar de perguntas feitas, o que ajuda a dar algum contexto.
A personalização das IAs atualmente é limitada pelo custo. Contudo, o custo da inferência e do ajuste fino de modelos de IA alimentados com dados privados/pessoais está caindo dramaticamente a cada mês. A hiperpersonalização é inevitável. Isso resultará em uma melhoria brutal na qualidade dos serviços.
O futuro de busca, comércio, análise e tomada de decisões será customizado, com interfaces ajustadas aos nossos estilos e preferências.
Um Exército de Agentes a Nosso Serviço
Acredito que teremos uma série de agentes personalizados que nos ajudarão em várias necessidades ao longo de nossas vidas. A visão de Patrick O’Shaughnessy, da rede de podcasts Colossus, exemplifica isso bem. Ele sugere que teremos uma coleção de agentes de IA personalizados (cada um com sua personalidade) para uma variedade de tarefas, conectados a fontes de dados públicas e pessoais. Esses agentes serão altamente interativos, como outros agentes humanos, e usarão interações e feedback para se ajustarem às nossas preferências.
Acredito que todos nós teremos um agente personalizado para:
Viagens (sugere e reserva viagens ideais)
Segurança (ajuda a gerenciar segurança digital, pessoal e física)
Agenda (ajuda a organizar sua programação)
Alimentação (sugere e acompanha receitas, faz pedidos, etc.)
Relacionamentos (ajuda a gerenciar a vida amorosa)
Saúde Médica (otimiza a saúde e a longevidade)
Investimentos (gerencia portfólio simples e analisa ativos complexos)
Conteúdo (entrega conteúdo personalizado em diferentes canais e meios)
E muitos outros.
Adaptações
Imaginem um casal de namorados que decide tirar férias. Para agilizar o processo, eles colocam seus “agentes de viagens” para interagir e decidir a próxima folga. A briga para decidir o local, o orçamento e o que fazer deixa de existir. Mas isso é algo bom?
A curto prazo, sim, pois evita potenciais desentendimentos. No entanto, férias são uma das primeiras coisas que planejamos juntos em um relacionamento; é uma experiência única e nos ajuda a conhecer a outra pessoa. Pode ser que os agentes de relacionamento consigam identificar com maior precisão quem é o “chinelo velho para o pé cansado” (como o Black Mirror já previu no episódio Hang the DJ), mas isso é algo para se pensar.
Talvez valha a reflexão sobre o quanto de perrengue precisamos ter na nossa vida. Ter a resiliência para passar dias sem comer talvez só seja útil numa situação de apocalipse, mas a força para superar a perda de um emprego é algo necessário num mundo em constante transformação.
Em Wall-E, depois de séculos sob o comando da IA piloto, coube a uma IA primitiva, o personagem título, inspirar o capitão da nave a tomar uma decisão por conta própria, contrariando a diretriz do modelo. O que será que vai acontecer conosco?
Evolução dos Capitães da nave de Wall-E, em cada geração o humano ficou mais passivo e a máquina mais presente
Grande abraço,
Edu
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