A verdade sobre os mercados preditivos

E a busca pela sabedoria da multidão

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Oi, pessoal! Nesta semana, o nome de Luana Lopes Lara dominou a mídia e as redes sociais.

Co-fundadora da Kalshi, ela anunciou uma rodada que avaliou a empresa em US$ 11 bilhões. Com isso, a brasileira se tornou a mulher mais jovem do mundo a atingir o status de bilionária sem herança.

Logo apareceram críticas como “ficou rica criando um site de apostas”, “que desperdício de talento”, “cassino digital”, “irresponsável”. E surgiram entrevistas que tentam moldar a história dela para empurrar agendas políticas ou sociais.

A Kalshi é pioneira em mercados preditivos. Eles não foram criados para animar o apostador de domingo, embora também cumpram esse papel.

Nasceram de uma pergunta antiga: como coordenar conhecimento espalhado por milhões de pessoas sem depender de uma mente central que controla tudo?

Mercados preditivos podem virar um dos pilares da experiência digital. Vale entender o que são e por que funcionam. É o tipo de assunto ideal para um artigo do bsb. Então vamos lá.

PS: Essa semana não teremos a versão em áudio do artigo.

Segue a versão de um minuto:

  • Mercados são computadores sociais. Hayek mostrou que o conhecimento vive espalhado em milhões de decisões diárias. Preços funcionam como sinais que comprimem essa informação e orientam a sociedade.

  • Mercados preditivos transformam esse sinal em probabilidade. Eles agregam incentivos, filtram ruído e, em 2024, anteciparam resultados melhor que pesquisas e especialistas. •

  • A tecnologia empurra o setor. Blockchain, queda de confiança em instituições e a lógica de memes criam o ambiente perfeito para mercados globais, acessíveis e sempre ligados.

  • Kalshi é a líder. Avanço regulatório, escala acelerada e uso crescente. Mesmo focando em esportes para ganhar liquidez, ela continua pavimentando o futuro dos mercados preditivos e do mercado de capitais digital.

O Problema do Conhecimento

O economista Friedrich Hayek era obcecado por mostrar que o verdadeiro desafio econômico não é fazer conta, mas sim lidar com informação espalhada.

Friedrich Hayek

Num de seus ensaios, ele escreveu que o conhecimento para organizar uma sociedade nunca está “dado” na cabeça de uma pessoa ou instituição. Ele vive em pedaços: no dono da pequena fábrica que conhece o fornecedor que entrega mais rápido, no agricultor que percebe uma praga antes dos relatórios oficiais, no consumidor que muda de bairro e troca de marca por causa disso.

Esse conhecimento é local, tácito e difícil de colocar em planilhas. Se um planejador central tentasse reunir tudo num supercomputador, esbarraria em dois limites. Primeiro, muita gente não consegue explicar o que sabe. Segundo, o mundo muda rápido. Quando a informação chegasse ao topo, já teria perdido valor.

Hayek propôs uma saída: descentralização. Em vez de concentrar conhecimento, criamos sistemas em que cada pessoa age com base no que sabe. A soma dessas ações forma um sinal que orienta o restante da sociedade.

Esse sinal recebe um nome que a gente usa todo dia: preço.

Preço não é só o número na etiqueta. É um pacote comprimido de informação sobre preferências, custos, riscos, alternativas. Quando o preço de um insumo sobe, ninguém precisa entender o motivo em detalhes. Basta ver o movimento e ajustar produção, consumo, investimento. A mágica é que cada decisão local joga nova informação de volta no sistema, o que atualiza os próprios preços.

Levando essa ideia ao extremo, os mercados funcionam como computadores: eles recebem, processam e guardam informações. Só que, em vez de bits em um data center, eles rodam em bilhões de cérebros, carteiras e decisões espalhadas pelo planeta.

Mercados preditivos levam essa lógica para o futuro. Em vez de calcular “qual o melhor uso deste recurso hoje”, a pergunta vira “qual a chance de X acontecer?”.

O preço deixa de ser só um índice de oferta e demanda e passa a representar probabilidade.

O que são mercados preditivos?

Na prática, um mercado preditivo é um lugar onde se negociam contratos ligados a eventos bem definidos.

O formato mais simples é binário. Você compra um contrato que paga R$ 1 se algo acontecer e zero se não acontecer. Se ele negocia a R$ 0,63, o mercado está sinalizando 63% de chance para o evento. Um ponto muda tudo: os incentivos. Quem participa coloca dinheiro em risco. Não é opinião jogada ao vento. Isso reduz ruído e limita a influência de quem tenta distorcer o debate.

Aos leitores que são investidores, gráficos como esse são úteis

Pesquisas, apostas e mercados

Aqui vale separar três coisas que costumam ser jogadas na mesma caixa.

  • Pesquisas de opinião: perguntam o que as pessoas acham. Quem responde não sofre qualquer consequência se estiver totalmente enganado. Taxa de resposta tende a cair, as amostras ficam enviesadas e o resultado vira só mais um dado no ruído.

  • Apostas tradicionais: em loteria ou em plataformas esportivas, o objetivo principal é entretenimento. A casa define as probabilidades, o apostador foca na emoção.

  • Mercados preditivos: combinam elementos dos dois. O contrato é estruturado de forma que o preço carregue informação útil pra qualquer pessoa que precise de um termômetro sobre o futuro. Na maioria dos casos, estes mercados não nascem pra divertir, mas sim como mecanismos de previsão. Empresas usam versões internas pra estimar quando um projeto será entregue ou quantas unidades de um produto vão ser vendidas num trimestre.

Como os incentivos funcionam

Imagine que você acha que determinada candidata tem 70% de chance de vencer uma eleição. Se o contrato que paga US$ 1 em caso de vitória dela está negociando a US$ 0,55, existe uma oportunidade. Você compra. Se estiver certo, ganha US$ 0,45 por contrato no final. Se estiver errado, perde o que colocou. Ao comprar, você empurra o preço na direção da sua estimativa. Quem discorda, vende ou compra o de outro candidato. No equilíbrio, o valor reflete uma espécie de média ponderada de milhares de modelos mentais, planilhas, conversas de bastidor e pesquisas.

Esse detalhe, o dinheiro em jogo, muda o comportamento. Pesquisas aceitam chute preguiçoso. Mercados preditivos punem preguiça. Em mercados grandes, quem quer colocar volume precisa pesquisar, rodar modelos, buscar informação exclusiva. O incentivo é claro: acerte mais que a média e você lucra.

Em 2024 os mercados preditivos conseguiram prever melhor a eleição presidencial do que os especialistas políticos e pesquisas de opinião. Enquanto estas afirmavam que a corrida estava acirrada, os mercados começaram a prever que Trump seria vencedor.

Esse é o tipo de gráfico que deveria amendontrar qual empresa de pesquisa

No fundo, eles são a melhor expressão real da sabedoria das multidões.

Como o preço carrega informação

Pense no mercado de petróleo. Quando o preço sobe forte, esse número embute várias hipóteses: risco de guerra, falha logística, mudança regulatória, aumento inesperado da demanda. Ninguém precisa destrinchar cada causa. Para muita gente, basta ver o movimento e ajustar produção, consumo ou investimento.

O mesmo vale para um mercado preditivo que pergunta “vai haver conflito relevante no Oriente Médio neste semestre?”. Em vez de folhear relatórios, você olha um número que condensa o que analistas, empresas, governos e observadores atentos enxergam.

O processo tem falhas, claro. Mesmo assim, reage rápido a sinais novos. Quando surge uma pista concreta, quem acredita ter leitura superior tenta explorar a diferença entre o preço atual e a probabilidade real. Esse movimento corrige o preço. Esses mercados não são infalíveis. Há riscos de manipulação e efeitos de manada.

Por que agora?

Três forças empurram os mercados preditivos no momento atual: infraestrutura tecnológica baseada em blockchain, desconfiança em instituições e um encaixe natural com a lógica de memes da internet.

1) Blockchain como infraestrutura

Protocolos de finanças descentralizadas mostram que é possível oferecer crédito, câmbio e derivativos sem a estrutura pesada dos bancos. Stablecoins criam um meio de troca digital vinculado a moedas fiduciárias, acessível em qualquer lugar com conexão. Dentro desse arranjo, mercados preditivos aparecem como alternativa transparente às previsões de especialistas.

Em vez de confiar em uma corretora ou casa de apostas, o usuário acessa um contrato inteligente, com regras claras e auditáveis. Oráculos levam o resultado do evento para o ambiente on-chain, e as liquidações seguem critérios objetivos. Essa arquitetura permite mercados globais, funcionando o dia inteiro. Uma pessoa em São Paulo, Nova Iorque ou ou Toquio negocia o mesmo contrato com a mesma regra de liquidação.

2) Confiança em instituições em baixa

Estudos globais como os da Edelman Trust Barometer apontam uma queda da confiança das pessoas nas instituições, a chamada “Crise de Ressentimento”.

Esse movimento é (i) global; (ii) cobre instituições desde governos, ONGs até empresas; (iii) Vem acontecendo fazem décadas e a tendência se mantém nos últimos anos.

No caso da mídia, o problema se acentuou. Veículos tradicionais vivem sob pressão por cliques. O resultado são manchetes barulhentas e pouco contexto. Pesquisas falham por metodologia ruim ou amostras enviesadas. Redes sociais empurram opiniões sem consequência: qualquer pessoa posta qualquer coisa em segundos. Mercados preditivos não eliminam desinformação, mas criam um número difícil de manipular com pura retórica. Se redes sociais oferecem opinião qualitativa, mercados preditivos oferecem convicção quantitativa. Falar é barato. Quem realmente acredita no que diz coloca dinheiro na própria tese.

3) São ótimos memes

O gráfico de “probabilidade ao longo do tempo” é divertido de observar. Ele mostra a história inteira de uma situação: queda, virada, favorito perdendo rumo, azarão crescendo. Esse formato funciona bem como meme. Ele comprime uma narrativa inteira em um único print. Você compartilha e todo mundo entende a trama: “era improvável, até que…” ou “estava ganho e escorregou”.

Por exemplo, o gráfico abaixo mostra como as chances de Donald Trump ganhar a eleição mudaram com cada evento:

Por muito tempo, essa estética ficou presa a três mundos: bolsa de valores, política com modelos estatísticos e esportes com dados robustos. Agora, com mercados preditivos cobrindo tudo, o gráfico se espalha. Qualquer pergunta real pode virar um desses caminhos visuais.

O print do contrato vira meme, atrai novos participantes e injeta liquidez quando o assunto esquenta. O público acompanha a história e já negocia o próximo capítulo. Essa união de gráfico, narrativa e status social cria um ajuste perfeito entre mercados preditivos e a cultura da internet. Não é só uma projeção numérica. É um formato de conteúdo.

Kalshi

Fundada em 2018 por dois colegas de turma do MIT, Luana Lara e Tarek Mansour, a Kalshi começou sua jornada no programa da Y Combinator. A rodada seguinte foi liderada pela Sequoia Capital e trouxe nomes de peso do mercado financeiro, como Henry Kravis, fundador da KKR, e Charles Schwab, fundador da corretora Schwab.

Luana e Tarek

Enquanto aplicativos como Uber cresciam no limite das regras, a Kalshi escolheu outro caminho. Buscou cada licença, na ordem correta, e operou dentro da lei desde o início.

Levou anos, mas alcançou um marco: tornou-se a primeira bolsa de mercados preditivos regulada pela autoridade de derivativos dos Estados Unidos. Com isso, ganhou a confiança de reguladores, parceiros institucionais e, por extensão, dos usuários.

É difícil exagerar o grau de dificuldade dessa trajetória. Enquanto colegas do MIT ganhavam fortunas em fundos quantitativos, Luana e Tarek navegavam burocracia, reuniões técnicas e decisões lentas.

Isso sem falar nos reveses. A CFTC, o órgão mais rígido dos EUA para derivativos, autorizou a Kalshi a operar como Designated Contract Market em 2020. Mas, em 2023, bloqueou os contratos ligados a eleições, afirmando que tinham semelhança com jogos de azar. Luana e Tarek recorreram à Justiça. Depois de uma disputa longa, venceram. Em setembro de 2024, o tribunal autorizou a oferta dos primeiros contratos eleitorais legais nos Estados Unidos em mais de um século.

Para uma versão mais vívida dessa jornada, vale ler o texto do meu amigo Faria Lima Elevator.

Do ponto de vista de produto, a plataforma cobre um leque amplo de eventos: eleições, inflação, taxa de juros, esportes, cultura pop. Cada contrato segue regras claras de resolução e liquidação. Em poucos anos, o volume acumulado passou da casa dos bilhões e segue em alta. Hoje, a empresa reúne mais tráfego, transações e volume que todos os outros mercados preditivos somados. A participação cresce mais rápido que a dos concorrentes.

Corretoras que atendem milhões de investidores nos EUA, como Robinhood e Coinbase, integraram os contratos da Kalshi diretamente em suas plataformas. Isso gera um efeito de rede: mais mercados atraem mais traders, que criam mais liquidez, que atraem mais parceiros e novas categorias de contrato.

Como você constrói algo? Do jeito que dá

Fonte: Coatue

Se olharmos acima os dados de volume semanais da Kalshi, os números impressionam em duas frentes: primeiro o crescimento espetacular que o negócio teve. Segundo que hoje a plataforma é utilizada principalmente para apostas esportivas.

Mas e toda aquela história sobre mercados preditivos e a sabedoria das multidões?

A Kalshi bateu recordes em 2024 com os contratos ligado a política. Após este ciclo, havia o risco de queda de liquidez. A decisão estratégica foi de focar em esportes, dado que são eventos que ocorrem diariamente. Esse setor fez a empresa aumentar o volume em 10x, chegando a mais de US$1.5Bi em contratos negociados semanalmente.

O número impressiona: mais de US$ 50 bilhões de volume anualizado, multiplicado por mais de 25 vezes em poucos meses, junto com anúncio de expansão pra mais de 140 países.

Os dados nos dizem muito, mas não contam a história inteira.

A Kalshi não ganha mais se a maioria das pessoas perde. Ela funciona como uma bolsa de derivativos, ganhando uma taxa sobre a movimentação. Isso faz toda a diferença e muda os incentivos. Empresas de bet querem que os clientes percam, pois eles embolsam parte das perdas. A Kalshi não faz isso.

Ao se posicionar como alternativa regulada, com estrutura de mercado financeiro e sem a figura da “casa” do cassino, a Kalshi atrai capital e ganha escala. Isso dá à empresa margem para entrar em mercados que geram mais valor para a sociedade.

O ponto aqui é: a presença de apostas esportivas não afasta a missão principal. A Kalshi continua construindo mercados preditivos, uma ferramenta com impacto positivo na sociedade.

Mercado de Capitais da Internet

Eu tenho uma tese: o mercado de capitais como conhecemos, organizado por geografia e classe de ativo, vai desaparecer. No lugar dele, veremos um mercado de capitais da Internet, contínuo, acessível ao mundo inteiro e operando sem pausa.

Estou vendo surgir uma camada em que aplicativos financeiros regulados se conectam a protocolos cripto abertos. Tudo roda sem interrupção e pode ser usado de qualquer lugar.

As fronteiras entre “investimento” e “aposta” começam a se desfazer. Você lê uma manchete sobre possível corte de juros e, no mesmo ambiente, abre um contrato que paga caso o corte ocorra dentro do prazo definido.

Consumir informação e tomar posição deixam de ser ações separadas. O feed vira uma mistura de notícias, cotações e botões para operar. Cada discurso, eleição, decisão judicial, lançamento de produto ou gol em uma final ganha um mercado associado.

Nesse desenho de super app financeiro, mercados preditivos ocupam um bloco central. Eles conectam informação macro, dados alternativos, sentimento social e conhecimento de nicho em um número simples. Não substituem pesquisa, análise ou modelos estatísticos. Mas criam um painel rápido, que revela pontos cegos e, em vários casos, funciona como auditor informal de narrativas oficiais.

Esse movimento começa nos Estados Unidos, com Robinhood, Coinbase, Circle e Kalshi. Já investi em três dessas quatro empresas ao longo dos anos. (Kalshi ficou de fora). Por isso me sinto à vontade para fazer essa aposta. E sim, estou colocando dinheiro por trás dela.

Para terminar, fica aqui minha mensagem:

Luana, meus parabéns. Você é motivo de orgulho para os brasileiros.

Grande abraço,

Edu

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